sábado, 10 de dezembro de 2011

O Rap em Salvador


Como os jovens rappers estão mudando a realidade da periferia.
Por Adriano S. Ribeiro/Fotos: Adriano S. Ribeiro

O jovem rapper Felipe Gurih grava no próprio quarto
Às quatro horas da manhã de uma sexta-feira, um acidente de trânsito deixou o bairro mais boêmio de Salvador (BA), o Rio Vermelho, sem energia, e 400 fãs de rap, que lotavam uma badalada casa de eventos, completamente no breu. Ao ser bruscamente interrompido pelo apagão, após duas horas de apresentação, o rapper Emicida foi iluminado, no palco, por celulares e câmeras fotográficas. Sem microfones, nem caixas de som, contando apenas com uma voz potente, o MC continuou cantando. A partir daí, foi o público que deu o show e, em coro a capella, recitou todos os versos da música Triunfo, puxada pelo ídolo. No final, Emicida chorou.
Emicida, iluminado pelo irmão, Fióti, no Sunshine Bar, Rio Vermelho

Três anos antes, Elimar Pereira Santos, conhecido como Nouve, na época com 18 anos, morador das Cajazeiras 10, bairro a 25 quilômetros do centro da cidade, enviava um e-mail para o já famoso Emicida. Nouve dizia ter interesse de revender, em Salvador, as camisas, discos e produtos comercializados pelo rapper em São Paulo. O precoce empreendedor já possuía experiência no ramo. 
“Naquela época, era muito difícil conseguir os CDs de rap, mas eu já vendia os de Kamau e Projota”, diz Nouve. No começo, ele negociava nas portas dos shows, mas, com o tempo, foi ficando conhecido e recebendo encomendas por telefone. “Para minha surpresa, Emicida respondeu ao meu e-mail e me tornei representante da marca”.
Nouve vende CDs na praia de Piatã

Emicida criou um laço comercial, mas também de amizade com a turma do rap baiano. “O pessoal de Salvador deveria fazer que nem o Nouve, mandar e-mail mesmo e correr atrás”, aconselha o ídolo para um grupo de admiradores, no saguão do hotel em que estava hospedado, na capital baiana. Nas duas vezes em que esteve em Salvador, em 2009 e 2011, foram os amigos soteropolitanos que abriram seus shows.
A carreira aparentemente meteórica de Emicida é um exemplo de superação. Tanto que virou um documentário, patrocinado pela maior fabricante de processadores de computador do planeta. Nascido e criado na periferia da megalópole paulista, levou dez anos no anonimato disputando batalhas de rimas, conhecidas como “freestyle”, na estação da Santa Cruz, em São Paulo. 
Ao contrário de outros artistas que seguem o percurso natural da indústria fonográfica - gravação em estúdios profissionais, prensagem em fábricas de CDs, produção de shows com empresas de eventos, impressão em gráficas, vendas nas lojas do ramo, publicidade na grande mídia, negociação dos direitos autorais nos escritórios de advocacia - Emicida fez tudo por conta própria, contando apenas com a ajuda de parentes e amigos. “Eu valorizo muito o trabalho e a amizade de todos que participam da nossa caminhada, mas sei que ainda temos muito trampo pra elevar o rap no Brasil”.
“Meus ídolos do rap são o Emicida e o Sabotage”. Essa afirmação foi proferida por Willian Reis, paulista de 38 anos, há dois radicado na Bahia. Willian foi amigo de Sabotage, um dos precursores do rap nacional, e ícone de toda uma geração. Sabotage foi assassinado em 2003, por envolvimento com o tráfico. “As bocas (de fumo) davam dinheiro; o rap, não”, explica Willian. 
Desde então, criou-se um paradoxo no mundo do hip hop, pois o movimento que pregava uma vida melhor para os favelados, não garantia nem o ganha-pão de seus integrantes. Emicida deu um basta. Um dos seus parceiros de rimas, o baiano MC DaGanja, explica que as letras das músicas de Emicida continuam carregadas de conteúdo de cunho social, “porém não é pesado, como alguns grupos que fazem gangsta rap”. É o que as torna mais aceitáveis. 
No entanto, Emicida adverte: “As iniciativas mais bem sucedidas são as que começaram com uma causa. Fazemos rap porque gostamos. Não adianta só correr atrás do dinheiro, pois podem se frustrar, depois de anos sem alcançar esse fim. A única coisa que podemos contar é com o amor das pessoas pela música”.
Emicida em Salvador, com Nouve, Rangell Santana e Fióti 

Seguindo a influência do famoso amigo paulistano, o franzino e calmo Nouve foi à luta. No colégio, escrevia versos com os colegas e participava de concursos de arte, canções e poesias. Depois, gravou alguns raps e mais tarde um CD. “Hoje, Nouve vende os discos dele até na praia”, diz Rangell Santana, do grupo Versu2.

Versu2
Coscarque e Rangell Santana, da Versu2

Rangell Santana é músico e designer. Há 15 anos atuando no cenário hip hop de Salvador, ficou conhecido como MC Rangell Blequimobiu. Ele explica que o hip hop é constituído por vários elementos – o rap (a música falada com rimas); o grafite (a expressão gráfica pintada nas ruas); o break (a dança de rua); o DJing (a escolha das músicas nas festas); o beatmaker (a produção das batidas do rap); o estilo (moda e gírias), e os designers (geralmente grafiteiros que criam sites e peças gráficas), além  de artistas visuais de cinema, que produzem os videoclipes de rap. 
Com tantos elementos, Rangell montou uma produtora, chamada Positivoz. Juntou pessoas de diversas áreas com o interesse comum em difundir a arte. No começo, investiram na carreira de amigos, como o MC DaGanja, focando depois no  grupo Versu2, formado por ele, Coscarque e DJ Gug. “No show, quem aparece no palco somos nós três, mas tudo só acontece graças ao coletivo que trabalha nos bastidores organizando desde a produção dos CDs, até a venda dos ingressos”, diz Rangell. 
Coletivo Positivoz organiza os detalhes do show de Emicida em Salvador

O rap na Bahia
O rap não é novidade na Bahia. MC DaGanja lembra do Coletivo Gamboa de Baixo, que já existia em 1993. Os pioneiros, como Lázaro Êre, Rangel Blequimobiu, Quilombo Vivo e Império Negro ultrapassaram barreiras que pareciam intransponíveis. “O DJ Bandido, do Quilombo Vivo, tocou até no exterior”, ressalta. DJ Branco, outro desbravador, tem um programa de rádio sobre hip hop na Educadora FM. Mas são os mais jovens, de vários locais da cidade, inclusive de bairros mais abastados, como Rio Vermelho e Imbuí, que enchem os encontros de MCs. “Todo dia aparece um garoto produzindo rap”, diz Rangell. Eles aproveitam a casa cheia, nos shows das estrelas como o Emicida, para vender e divulgar os próprios trabalhos, gravados em casa ou em estúdios de garagem. “Usamos muito as redes sociais para anunciar os eventos, às vezes a mídia tradicional, mas o forte da propaganda é a rua mesmo, com panfletagem e de boca em boca”, diz Rangell.
O doutor em antropologia e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Renato Silveira, pesquisador de mídia e cultura, considera o movimento hip hop da Bahia importante e mobilizador, e acredita que a tendência é de crescimento. Ele compara com outro fenômeno que explodiu a partir dos bairros populares, o pagode, hoje um negócio lucrativo com produções modernas e gestão empresarial.
Os jovens Evilásio Cruz e Lefs Rap vendem CDs caseiros em show de rap

A nova geração do hip hop baiano já vem preparada com os acessórios necessários para deslanchar. Por toda a cidade pululam grupos de MCs nas batalhas de rimas; de B-boys, concorrendo pelos melhores passes de street dance; de Beatmakers, produzindo a batida perfeita, e de grafiteiros buscando mais espaço para as intervenções. Eles estão espalhados pelos bairros mais distantes do centro como Cajazeiras, Fazenda Grande e Águas Claras, mas sem preconceito com os que moram nas regiões de classe média como Imbuí, Pituaçu e Itapuã. O movimento também se estende às cidades circunvizinhas, com uma cena forte em Portão e em Lauro de Freitas.
Daqui em diante, resta aguardar para saber o que acontecerá com o hip hop na terra do candomblé. “Já estou articulando a minha produtora”, diz o jovem e já veterano rapper Nouve. Ele e os parceiros das “quebradas” trocam várias experiências de beats. Nesse meio, se destacou um dos garotos mais talentosos. Com 17 anos, Felipe Gurih sequer toca um instrumento, mas no seu computador pessoal, com alguns anos de uso, cria uma verdadeira orquestra virtual. 
Usando um software específico, o Fruitloops, Gurih, sozinho, produziu um rap. Ele compôs a letra, “sampleou” a batida, mixou, gravou a voz, “masterizou” e, de quebra, filmou um videoclipe para postar no Youtube, tudo isso aos 15 anos de idade. Hoje, com dezenas de milhares de cliques no site de compartilhamento de vídeo, Gurih produz outros MCs e se prepara para gravar o próprio CD.
Felipe Gurih
Links:
Clipe da música Triunfo, de Emicida
Clipe de Felipe Gurih, feito aos 15 anos
MC Nouve, Velhos Tempos
Sabotage - Rap é Compromisso
Felipe Gurih - O que ela tem
Império Negro - Desabafo do Trabalhador
Nova Saga - Celular

terça-feira, 21 de junho de 2011

Bahia sediará III Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas

Em meio a uma diversidade de opiniões na plenária de encerramento do II Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas (BlogProg), em Brasília, neste domingo, 19, uma das poucas decisões unânimes foi a escolha da sede do evento, em maio 2012, na Bahia.
O blogueiro baiano Dimas Roque (Notícias do Sertão) previu esse resultado antes mesmo do início da votação. De acordo com Dimas, “inclusive os companheiros do Rio de Janeiro (o outro estado candidato) sinalizaram preferir Salvador (BA) como sede para o próximo encontro”. Os integrantes da delegação da Bahia disseram sentir como o Estado é querido em todo o Brasil. Além disso, a rapidez na organização do evento regional, que precedeu o nacional, também causou boa impressão aos participantes das outras regiões. ”A Bahia, apesar do pouco tempo que teve para preparar tudo, fez um belo trabalho, e, além disso, teve o apoio da Secretaria de Comunicação do Estado”, disse o idealizador do BlogProg, o jornalista Altamiro Borges, conhecido como Miro. Os baianos comemoraram a escolha e reconheceram a vitória obtida com o esforço mútuo.
Comissão baiana no II BlogProg
Nas mais de seis horas seguidas de debates, que aconteceram no auditório da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC), para se chegar ao texto final da carta do II Blogprog, divulgada nesta segunda-feira, 20, apenas a escolha do blogueiro do ano foi tão consensual quanto a decisão da Bahia como local do III encontro. O homenageado, Ênio Barroso (O PTrem das treze), foi um dos responsáveis pela ida do ex-presidente Lula ao evento. Emocionado, Ênio recebeu as congratulações do seu antecessor, Sr. Cloaca, do Cloaca News. “Ninguém pode brilhar quando só brilha um, apenas quando brilham todos”, disse Ênio, bastante aplaudido.

Ênio Barroso se emociona com homenagem
Além da mensagem deixada por Ênio, outra foi repetida inúmeras vezes. A de que os blogueiros precisam se mobilizar para alcançar os objetivos declarados na carta, a favor da luta pela democratização das comunicações no país. Todos se uniram para finalizar o texto que cobra a aprovação do novo Marco Regulatório dos meios de comunicação; do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL); e a garantia de liberdade na internet. Os mais experientes como o ex-ministro José Dirceu, a deputada Luiza Erundina (PSB) e o ex-presidente Lula concordaram que apenas com o apoio da sociedade o governo terá forças para cobrar os direitos de todo cidadão. “O ministro sozinho não dá conta de aprovar a PL 116, e o monopólio das comunicações não quer concorrência. É hora dos blogs darem um grande salto e partir para a mobilização”, disse Dirceu.

Mesa de política, com José Dirceu e Brizola neto
Marco Biruel, de São José dos Campos (SP), blogueiro presente em Brasília, é um dos que anteveem uma nova era de compartilhamento da informação entre os internautas progressistas do Brasil. Criador de um site colaborativo, Teia Livre, Biruel explicou a necessidade de se manter a “horizontalidade do movimento”. Para o paulista, o momento de crescimento por que passa o país, com uma grande massa se conectando a rede, precisa ser aproveitado pelos blogueiros. “Temos a responsabilidade de manter essa nova classe bem informada, antes que a velha mídia o faça” disse Biruel. A não verticalidade do movimento era consenso entre a maioria. O deputado Brizola Neto (PDT) falou, na oficina autogestionada, do dia 18, que a rede ainda é elitizada e que haverá uma grande batalha entre a “pequena trincheira dos blogueiros contra o canhão dos grandes meios”. Em consonância a esse discurso, o jurista Fábio Konder Comparato deu exemplos de dificuldades enfrentadas para se obter direito de resposta dos ”oligopólios” da comunicação. Erundina completou dizendo que todas as grandes reformas sociais, como a Reforma Agrária, por exemplo, só avançarão quando o poder da informação for desconcentrado.

Marco Biruel (de pé), do Teia Livre
Mas muitos pontos polêmicos continuaram sem definição. “Em um movimento plural como esse, é normal haver discordâncias”, afirmou Altamiro Borges. Niara de Oliveira (Pimenta com limão), de Pelotas (RS), representante da blogosfera feminista, falou da desigualdade social, racial e sexual que ela identificou no próprio evento. Apesar da diversidade de pessoas provenientes de todos os cantos do país, ela chamou a atenção para a preeminência de “homens brancos” na articulação do Blogprog. Rumba Gabriel (Agência de Notícias das Favelas - ANF), do Rio de Janeiro (RJ), também disse que gostaria de ter visto mais representantes dos morros e periferias. A resposta de Miro foi a de que o movimento vai mudando com o tempo e adquirindo legitimidade na sociedade. “É bom que tenha polêmica, sem predominância de um pensamento único”, disse. Ele falou que a comissão nacional não funciona como uma direção ou uma coordenação, e que tudo é na base da votação. Esclareceu, ainda, que existem entidades patrocinadoras e de apoio ao encontro, como a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), que esteve aberta à conversa. “Mas muitos dos recursos do governo são também disponibilizados para outras entidades, como a Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ), para eventos similares a esse. Por que não patrocinar um movimento social como o nosso”? Questionou, Miro. E completou: “A reivindicação de patrocínio não compromete a nossa independência, a Veja e a Globo, por exemplo, recebem muito apoio e, no entanto, batem no governo”, finalizou.

Rumba Gabriel - ANF
Contudo, muitos pontos positivos foram destacados. Além da presença de Lula no BlogProg que, como um astro, foi cercado por dezenas de repórteres e admiradores e despontou como atração principal para os mais de 500 presentes (349 inscritos), Miro ressaltou a importância que o ex-presidente deu aos blogueiros e tuiteiros no seu discurso. No Twitter, o presidente do Peru, Ollanta Humala, também homenageou os presentes, que contaram com a participação dos articuladores da campanha presidencial peruana em uma oficina autogestionada. Por fim, foi divulgado o projeto para o Seminário Internacional de Blogueiros, em Foz do Iguaçu, previsto para setembro, com Julian Assange (WikiLeaks), entre os convidados; e a criação do fundo de apoio jurídico aos blogueiros perseguidos, apoiado por uma ONG global de Direitos Humanos.
Lula fala aos blogueiros
“A Bahia tem o desafio de organizar um encontro melhor do que o de Brasília”, disse Miro, advertindo a comissão baiana. O jornalista falou que se houver hierarquização na escolha dos organizadores sem uma renovação dos membros o movimento poderá sofrer prejuízos. Miro anunciou a saída de Luís Nassif, Luiz Carlos Azenha e Diego Casais da comissão nacional e agradeceu pela ajuda desprendida pelos aguerridos blogueiros no ano anterior e, em contrapartida, divulgou a inclusão do jornalista Leandro Fortes (Carta Capital) e a eleição de novos representantes de todas as regiões do país.


 Altamiro Borges

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O preconceito contra o islamismo


Sete de abril de 2011 foi um dia de luto para os parentes e amigos das vítimas de Wellington Menezes de Oliveira, 23, autor do atentado na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ). Mas foi também um dia de consternação para quem acompanhava a grande mídia. Às oito horas da manhã daquela fatídica quinta-feira, o atirador, armado com dois revólveres e muita munição, disparou contra dezenas de crianças que ele sequer conhecia. Menos de três horas depois do massacre os principais veículos nacionais destacaram, nas primeiras páginas dos seus portais, o que motivou tamanha brutalidade.
Nas manchetes, com letras garrafais, se ensaiava o gancho para a próxima grande notícia que pautaria os noticiários: o assassino de criancinhas estava a serviço do Islã.
Mas como se chegou a essa sentença tão preliminarmente?
Wellington premeditou o crime. Em seus planos sombrios, ele próprio sairia sem vida da operação. Preparou uma carta instruindo como deveria ser o próprio velório. Nela dizia que não queria ser tocado por impuros. Também escreveu que deveriam despi-lo e enrolá-lo em um lençol branco antes de ser colocado no caixão. Depois, pediu pelo perdão de Deus, narrou a volta de Jesus e fantasiou o despertar de seu sono. Em outro parágrafo, expressou o desejo para que doassem seus bens para instituições que cuidavam de animais abandonados. O texto, confuso, parecia saído de uma mente insana, com crenças bem particulares.
No calor dos acontecimentos, o coronel Djalma Beltrame, em entrevista à Globo News, às 10h40min, descreveu as primeiras impressões da tragédia. “Parece que é a ação de um alucinado, de uma pessoa fundamentalista, que acessa sites de muçulmanos, islâmicos”, disse. O coronel afirmou que só alguém sem espírito cristão poderia fazer uma loucura daquelas. Ele ainda confirmou que o texto era sem sentido, e que o conteúdo nem poderia ser classificado como religião. Beltrame entregou a carta diretamente ao delegado responsável pelo caso, para que fosse averiguada.
Na ânsia pelo furo, os repórteres saíram à caça de mais informações. Por volta das 11 horas, o jornalista Ricardo Boechat, da Band News, divulgou a gravação de uma conversa com a irmã de criação do assassino, Rosilane de Oliveira. Eles se falaram ao telefone, e o entrevistador queria mais detalhes do atirador. O experiente repórter questionou, de antemão, se Wellington era muçulmano. A essa altura, um especialista da Globo News associava até a vestimenta do assassino ao islamismo. No entanto, Wellington trajava um coturno e uma camisa social de manga longa verde, que mais lembrava um militar.
A moça, nitidamente nervosa, confirmou vacilante. “Ele (Wellington) era estranho; falava besteiras. Negócio de muçulmano, essas coisas”. A resposta foi vaga e evasiva. Com mais propriedade, ela explicou que a mãe, já morta, era Testemunha de Jeová, porém o irmão não seguia mais aquela religião. Além disso, ele era muito reservado e só vivia no computador, isolado.
Foi assim que, por volta das 11 horas, a Band News publicou a seguinte manchete: “Tragédia em Realengo: Ele tinha relação com o islamismo, diz irmã do atirador”.
A novidade repercutiu no UOL, com o título:
“Irmã de atirador diz que ele era ligado ao Islamismo e não saia muito de casa; ele deixou carta suicida”.
Como em um estouro de manada, outros grandes veículos publicaram como fato o que carecia de comprovação. Citaram como fontes as entrevistas da Globo News e da Band News. Entre os portais nacionais destacou-se o Estadão, com o uso de letras amarelas que luziam num macabro fundo preto. Em minutos, as suposições se espalharam pelo mundo através da agencia de notícias Reuters, e de jornais europeus.
O ato irresponsável, e aparentemente não orquestrado, incentivou manifestações de intolerância religiosa nas redes sociais. A Constituição brasileira, que garante a liberdade de religiões, foi ignorada. Dias depois, a teoria foi desmontada aos poucos por especialistas, teólogos, representantes e estudiosos de várias religiões. A polícia ainda investiga o caso, mas tudo indica que a motivação do jovem atirador foi conseqüência de delírios esquizofrênicos de uma mente psicótica.
É importante que essa triste história sirva de exemplo aos demais jornalistas. Que a profissão seja exercida com mais responsabilidade, respeitando os compromissos éticos e sociais. Que se aceite as diferenças e se repila o pensamento único, estereotipado. O racismo e a discriminação, ao contrário do que grupos elitistas e preconceituosos apregoam, engessam a livre expressão. As notícias que abordam as minorias de raça, de gênero, de religião ou de orientação sexual, podem e devem ser debatidas. No entanto, exige-se cuidado redobrado na apuração e na divulgação, pela fragilidade dos envolvidos. Usar o preconceito para vender jornal é, no mínimo, inaceitável.