quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Comunidade do Conjunto ACM - Cabula I - 2010 - Parte 01

Comunidade do Conjunto ACM - Cabula I - 2010 - Parte 02

Como Denissena e o Projeto Cidadão mudaram o visual do Cabula I



Denissena e educandos do Projeto Cidadão

O ano era 2000, numa região a cinco quilômetros de Salvador (BA), chamada Cabula I. Denis Sena, mais conhecido como Denissena, 34, e Zeze Olukemi, 29, grafitaram o muro da entrada do Conjunto Habitacional Antônio Carlos Magalhães (Conjunto ACM). A pintura chocava, pois retratava uma mulher nua, com as pernas abertas, dando à luz várias crianças. “O que mais chamava a atenção eram os bebês, que evoluíam e se transformavam em jovens empunhando armas de fogo”, conta Zeze, companheiro de Sena e cúmplice na operação, que gerou mal-estar com um polêmico político, morador do bairro. Na época, todos estavam acostumados com as paredes pintadas por grafiteiros. Apesar de a linguagem ser nova, e a tribo urbana, incipiente, o local era um ponto de livre expressão para eles. No entanto, o desenho da gestante foi prontamente censurado pelo vereador Antônio Carlos Silva Souza (PRP), conhecido como “Bomba”, que não gostou do que viu e deu ordens para apagar. Sem se intimidar, Denis refez a arte, um pouco menor, mas com o mesmo apelo. Dessa vez, ele estava acompanhado por um grupo de crianças e jovens aprendizes da ONG Projeto Cidadão, do Cabula I. “A pintura continua lá, até hoje. Bomba teve que acatar a vontade da maioria”, conta Zeze.

Uma década mais tarde, em um restaurante no Caminho das Árvores, requintado bairro de Salvador, outro grupo, de artistas e profissionais das artes plásticas, prestigiava um vernissage do colega Denis. O menino raquítico, que iniciou a carreira dando aulas para crianças carentes, na ONG Projeto Cidadão, agora, recepcionava os convidados da mostra Meus Heróis, evento de divulgação do projeto intitulado Graffiti de Rua na Galeria, patrocinado pelos Correios. O evento ocorreu paralelamente a outra exposição do grafiteiro, no Espaço Caixa Cultural, da Caixa Econômica Federal. Alguns dias antes, Denis estava na África, expondo em Angola.

Esses dez anos de criação levaram o grafiteiro baiano a conhecer as grandes metrópoles do mundo: São Paulo, Nova Iorque, Tóquio. Mas foi no simples mercadinho de seu Zé, entre as comunidades do Cabula I e Beiru, que, bem à vontade, falou da vida e da carreira, fumando um charuto típico do candomblé e tomando uma cerveja gelada.

Zeze Olukemi, no evento de Sena

“O grafite é uma das mais antigas formas de comunicação criadas pelo homem. A técnica de pintar as paredes das cavernas é milenar. Paradoxalmente, é uma arte efêmera por natureza, pois o desenho pode estar no muro, hoje, e, no outro dia, não estar mais lá”, diz Denis. Ele experimenta várias linguagens artísticas, mas sempre expressa a cultura baiana, com a qual se identifica. O candomblé é uma grande influência nos desenhos que faz, seguindo o exemplo do ídolo, o artista Caribé.

Em 2000, Denissena foi voluntário no Projeto Cidadão, coordenado por Antônio Jorge, atual presidente da associação de moradores do Conjunto ACM. Resolveu ingressar nessa empreitada pela carência da comunidade e por sentir falta de políticas públicas na região. Ele e Antônio Jorge sempre acreditaram na ação social sem vínculos partidários. Depois dessa experiência, escolas de outras cidades os convidaram para implantar projetos semelhantes. “Em Amargosa (BA), crianças de outras escolas pulavam o muro para participar do programa”, diz o coordenador.

Antônio Jorge, 45, pedagogo, conhecido como “Toinho”, é presidente da associação de moradores do Conjunto ACM, que existe há 38 anos. Ele afirma que não se recandidatará ao cargo este ano, pois pretende fazer pós-graduação, relacionada ao meio ambiente. "A alternância na presidência é saudável e democrática. Se não existisse a oposição, eu acabaria me acomodando”, diz. Ele rechaça o clientelismo e proselitismo da politicagem. “Para um político entrar aqui, tem que pedir licença à comunidade”. Contudo, a ONG, mesmo carecendo de recursos, será tocada normalmente. Antônio Jorge tenta, a todo custo, reverter a ausência do Estado na comunidade. “Eu crio políticas de inclusão social, com a ajuda dos voluntários da ONG e dos moradores do conjunto”.

O pedagogo conta que entrou no páreo para assumir a presidência da associação ao saber que “Bomba” era o candidato da oposição. Como achava que o político não resolveria os problemas da comunidade, resolveu lançar a própria candidatura, da noite para o dia. Confeccionou panfletos e, com um grupo de amigos, colocou-os debaixo das portas dos moradores. Resultado: mais de 50% de votos a seu favor. Ele explica que, mesmo com o curto tempo que teve para a campanha, a vitória foi resultado de um trabalho “feito aos poucos e começando de baixo”. Ele ainda dá uma lição ao vereador: “É preciso saber fazer a diferença na comunidade e levar isso para o resto da sociedade”.


Antônio Jorge, fundador do Projeto Cidadão

Sr. Josias de Almeida, um dos mais antigos moradores do conjunto, atesta a seriedade de Antônio Jorge no que concerne aos trabalhos comunitários e da associação. “Ele gosta de tudo certinho”, garante. Os jovens também o citam como uma referência naquelas bandas.

O Conjunto ACM é como um oásis na região, rodeado pelos bairros Beiru, Engomadeira, Arraial do Retiro, Barreiras e Mata Escura, todos com estruturas urbanísticas deficitárias. A disputada quadra poliesportiva e o espaçoso jardim atraem toda a população das adjacências. “A molecada é que mais gosta e se beneficia”, completa Antônio Jorge. Ele dá o exemplo de Samuca, que começou como educando do projeto e depois se tornou professor. “Atualmente, o garoto está cursando Artes Plásticas na UFBA”, gaba-se.

Samuca, morador da Boca do Rio, conheceu a ONG em 2003, quando leu na agenda da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) sobre os trabalhos de Denissena, no Cabula I. “Fui atrás e me inscrevi como aprendiz, depois virei professor”, conta o estudante da UFBA. Samuca relembra que, naquele tempo, fazer grafite era muito mais difícil. “Além de ser uma atividade cara e sem reconhecimento, éramos confundidos com vândalos”, diz.

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Sobre o Projeto Cidadão

O Instituto para Educação, Cultura e Desenvolvimento (Projeto Cidadão) foi fundado em cinco de Janeiro de 2000, com o propósito de dar às crianças, adolescentes e jovens da comunidade do Cabula I e redondezas a oportunidade de participarem de oficinas orientadas por educadores sociais ou arte-educadores, fora do horário da escola.

A instituição é uma Oscip: Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Lei 9790/99). Trata-se de uma ONG com certificado emitido pelo poder público, em que se pode contratar pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). As Oscips são financiadas pelo Estado ou pela iniciativa privada, e não têm fins lucrativos.

Nos dez anos de funcionamento, mais de 1500 jovens fizeram oficinas de teatro, fotografia, dança de salão, dança moderna, futebol, futsal, grafite, artesanato, porcelana fria, artes, desenho artístico, artes plásticas, capoeira, percussão e reforço escolar.

Os recursos para manter a ONG são provenientes de editais e de voluntários. A divulgação se dá, principalmente, no boca a boca, e também em palestras e apresentações em universidades. “Já saíram algumas matérias e notas na TV e nos jornais”, diz Toinho.


Foto divulgação - Projeto Cidadão
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A trajetória artística e profissional de Denissena se mistura com a história da ONG. Ele admite que os concursos de grafite, organizados pelo parceiro Antônio Jorge, lhe deram muita visibilidade. “Realizamos diversas intervenções, diversos eventos, resultando numa projeção do meu trabalho. Mas também foi uma luta diária, e é por isso que eu me autodenomino um operário cultural”, diz Sena. “Venho de uma família de origem simples, periférica, mas que me deu o essencial, educação e amor. Hoje, eu passo esses mesmos valores para a comunidade: de que a família precisa estar presente no convívio com os meninos”. Denis se lembra da vez em que ganharam o primeiro concurso de grafite, patrocinado pela Entursa. “Dividimos o prêmio de 10 mil reais entre os 10 grafiteiros que participaram, em 2003. No segundo ano, já éramos 20”, recorda.

A artista plástica Ana Paula Rios elogia o trabalho de Sena. “Desde 1996, ele experimenta diversas linguagens artísticas para expressar sua identificação com a cultura baiana, marcada pelas raízes negras africanas e por um discurso em defesa de valores como liberdade, paz e consciência social. Ele é um artista inquieto, que usa a rua e materiais incomuns, como lixo reaproveitado, como suporte para suas obras”. Além da participação de Sena no Projeto Cidadão, Ana Paula destaca outro trabalho dele no campo da arte-educação. “Ele foi instrutor de grafite no Projeto Abrindo Espaços, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no ano de 2002”.

A diretora da Escola Municipal Cabula I, Eugênia Reis, recorda-se de quando a TV Aratu esteve no estabelecimento para gravar um programa sobre artes e projetos sociais, com Denis. “Ele ensinava professores e alunos a fazerem trabalhos de reciclagem com garrafas PET. Foi o primeiro contrato oficial que assinou com um órgão público”, orgulha-se Eugênia. “Através da arte, ele conheceu até o Brooklin , bairro de Nova Iork, nos Estados Unidos”, frisou. Denis esteve em Nova Iork, onde deu palestras em oito universidades, com o objetivo de divulgar o projeto Salvador Graffita, desenvolvido pela prefeitura de Salvador, em parceria com 43 grafiteiros.

Quem chega ao Conjunto ACM percebe que é um lugar diferente. Os muros pintados pela trupe do Projeto Cidadão mudaram o visual do Cabula I e são uma marca registrada do local. Em Salvador, é comum citar pontos de referência, pois a sinalização é precária e muitas residências não são numeradas. É assim que Denis explica como chegar à sua casa. “Depois da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), siga pela Estrada das Barreiras; ao visualizar uma parede grafitada, vire à esquerda”. Cada muro desenhado naquela região tem uma história. Basta dar uma volta de carro com Denis para ficar sabendo de cada uma delas. “Esse muro foi meu aluno que fez”, aponta, orgulhoso. “Muitos desses meninos podiam ter seguido caminhos tortuosos, mas estão aprendendo arte”, completa. Edilson Rocha, 15, mostra as técnicas de Free Style que está aprendendo com o mestre. “Hoje, minha vida é desenhar. Sempre penso em passar em algum lugar e ver um desenho meu”, orgulha-se.


Edilson mostra a técnica "Bomb"de grafite